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Prólogo - José Colaço Barreiros - Difel 

(prime tre pagine)

- Então, senhor Klauser, Mami Jane deve morrer?
- Vão todos bardamerda.
- É um sim ou um não?
- O que lhe parece?
Em Outubro de 1987, a CRB - editora desde há vinte e dois anos das aventuras do mítico Ballon Mac - decidiu fazer um referendo entre os seus leitores para estabelecer se era caso de fazer morrer Mami Jane. Ballon Mac era um super-herói cego que de dia era dentista e de noite combatia o Mal graças aos poderes muito especiais da sua saliva. Mami Jane era a mãe dele. Os leitores, em geral, tinham um grande afecto por ela: coleccionava velhos escalpes índios e à noite exibia-se, tocando contrabaixo, num conjunto de blues totalmente composto por negros. Ela era branca. A ideia de fazê-la lerpar viera do director comercial da CRB - um senhor muito sossegado que tinha uma única paixão: os comboiozinhos eléctricos. Afirmava que Ballon Mac já estava numa linha desactivada e precisava de novas motivações. A morte da mãe - trucidada por um comboio quando fugia perseguida por um cambista paranóico - transformá-lo-ia numa mistura fatal de raiva e de dor, ou seja, no retrato chapado do seu leitor médio. A ideia era idiota. Mas o leitor médio de Ballon Mac também era idiota.
Assim, em Outubro de 1987, a CRB esvaziou uma sala do segundo andar e meteu lá dentro oito meninas com a tarefa de atenderem o telefone e recolherem as opiniões dos leitores. A pergunta era: Mami Jane deve morrer?
Das oito meninas, quatro eram empregadas da CRB, duas tinham-nas mandado o serviço de emprego, uma era sobrinha do presidente. A última, uma rapariga dos seus trinta anos que era de Pomona, estava ali com um contrato de estagiária obtido respondendo exactamente a um concurso radiofónico ("O que é que Ballon Mac mais odeia no mundo?" "Fazer uma destartarização."). Andava sempre com um gravador pequenino. De vez em quando ligava-o e dizia coisas lá para dentro.
Chamava-se Shatzy Shell.
Às 10 e 45 do décimo segundo dia de referendo - quando a morte de Mami Jane estava a ganhar por 64 a 30 (os 6 por cento restantes consideravam que deviam ir todos levar no cu, e telefonaram para o dizer) - Shatzy Shell ouviu tocar o telefone pela vigésima primeira vez, escreveu no impresso que tinha à frente o número 21 e levantou o auscultador. Seguiu-se esta conversa:
- CRB, bom dia.
- Bom dia, já chegou Diesel?
- Quem?
- Okay, ainda não chegou...
- Aqui é a CRB, senhor.
- Sim, bem sei.
- Deve ter-se enganado no número.
- Não, não, está tudo bem, agora oiça-me bem...
- Senhor...
- Sim?
- Aqui é a CRB, é o referendo "Mami Jane deve morrer?".
- Obrigado, bem sei.
- Então importa-se de ter a amabilidade de me dar o seu nome?
- Não tem importância o meu nome.
- Tem de dar-mo, é da praxe.
- Okay, okay... Gould... o meu nome é Gould.
- Senhor Gould.
- Sim, senhor Gould, agora posso... Mami Jane deve morrer?
- Perdão?
- Deverá dizer-me o que pensa você... se Mami Jane deve morrer ou não.
- Oh santo Deus...
- Você sabe, não é verdade?, quem é Mami Jane?
- Claro que sei, mas...
- Vê, deverá só dizer-me se pensa que...
- Quer fazer o favor de me ouvir só um instante?
- Claro.
- Então faça-me um favor, olhe à sua volta.
- Eu?
- Sim.
- Aqui?
- Sim, aí, na sala, faça-me este favor.
- Okay, estou a ver.
- Bom. Vê por acaso um rapaz rapado à máquina zero trazendo pela mão um muito grande, mas mesmo grande, uma espécie de gigante, com uns sapatos enormes, e um casaco verde?
- Não, não creio.
- Tem a certeza?
- Sim, tenho a certeza.
- Bom. Então ainda não chegaram.
- Não.
- Okay, então quero que fique sabendo uma coisa.
- Sim?
- Esses dois não são maus.
- Não?
- Não. Quando chegarem vão pôr-se a dar cabo de tudo, e com todas as probabilidades vão pegar no seu telefone e apertar-lho à roda do pescoço, ou coisas do género, mas não são rapazes maus, na verdade, é só que...
- Senhor Gould...
- Sim?
- Importa-se de me dizer quantos anos tem?
- Treze. 

Prólogo - Roberta Barni - Rocco
(prime tre pagine)

- Então, senhor Klauser, Mami Jane tem de morrer?
- Vão todos à merda.
- Isso é um sim ou um não?
- O que o senhor acha?
Em outubro de 1987, a CRB - há 22 anos editora das aventuras do fabuloso Ballon Mac - decidiu lançar uma enquete entre seus leitores para estabelecer se era o caso de "matar" Mami Jane. Ballon Mac era um super-herói cego que durante o dia era dentista e à noite lutava contra o Mal graças aos poderes muito peculiares de sua saliva. Mami Jane era sua mãe. Os leitores, em geral, tinham muito carinho por ela: colecionava velhos escalpos índios e à noite exibia-se, como baixista, num conjunto de blues totalmente composto por negros. Ela era branca. A idéia de fazê-la ter um troço fora do diretor comercial da CRB - um senhor muito tranqüilo que tinha uma única paixão: trenzinhos elétricos. Dizia que Ballon Mac estava num trilho morto, e precisava de novas motivações. A morte da mãe - atropelada por um trem quando estava fugindo da perseguição de um ferroviário paranóico - o transformaria numa mistura letal de raiva e dor, ou seja, no retrato cuspido e escarrado de seu leitor médio. A idéia era idiota. Mas o leitor médio de Ballon Mac também era.
Assim, em outubro de 1987, a CRB esvaziou uma sala do segundo andar e colocou lá dentro oito mocinhas com a tarefa de atender o telefone e coletar a opinião dos leitores. A pergunta era: Mami Jane tem de morrer?
Das oito mocinhas, quatro eram funcionárias da CRB, duas haviam sido mandadas pelos serviços sociais, uma era sobrinha do presidente. A última, uma moça de uns trinta anos que era de Pomona, estava ali com um contrato de estagiária que tinha ganho respondendo corretamente a um concurso radiofônico ("O que é que Ballon Mac mais odeia no mundo?" "Fazer a remoção do tártaro"). Sempre andava por aí com um gravadorzinho. De vez em quando o ligava, e dizia umas coisas para dentro dele.
Chamava-se Shatzy Shell.
Às 10:45h do décimo segundo dia de enquete - quando a morte de Mami Jane estava ganhando por 64 a trinta (os 6% restantes achavam que todos tinham de ir tomar no cu, e até tinham telefonado para dizer isso) - Shatzy Shell ouviu o telefone tocar pela vigésima primeira vez, escreveu no formulário que estava à sua frente o número 21, e atendeu. Seguiu-se a seguinte conversa:
- CRB, bom-dia.
- Bom-dia, Diesel já chegou?
- Quem?
- Ok, ainda não chegou...
- Aqui é a CRB, senhor.
- Sim, eu sei.
- Deve ser engano.
- Não, não, está tudo bem, agora ouça.
- Senhor.
- Pois não?
- Aqui é a CRB, é a enquete "Mami Jane tem de morrer?".
- Obrigado, sei disso.
- Então por gentileza, qual o seu nome?
- Meu nome não interessa...
- Tem de me dar, é a praxe.
- Ok, ok... Gould... meu nome é Gould.
- Senhor Gould.
- É, senhor Gould, agora, se eu puder... Mami Jane, tem de morrer?
- Como?
- O senhor deveria me dizer o que acha se Mami Jane
tem de morrer ou não.
- O céus
- O senhor sabe, não?, quem é Mami Jane?
- Claro, claro que sei, mas...
- Veja, o senhor teria de me dizer apenas se acha que
- Quer me ouvir um instante?
- Claro.
- Olhe, faça-me um favor, dê uma olhada à sua volta.
- Eu?
- É.
- Aqui?
- É, aí, na sala, faça-me esse favor.
- Ok, estou olhando.
- Muito bem. Por acaso está vendo um moço de cabeça raspada segurando pela mão um cara muito grande, mas grande mesmo, uma espécie de gigante, com uns sapatos enormes, e um casaco verde?
- Não, acho que não.
-Tem certeza?
- Tenho certeza.
- Muito bem. Então ainda não chegaram.
- Não.
- Está bem, então quero que saiba de uma coisa.
- O quê?
- Aqueles dois não são maus.
- Não?
- Não. Quando chegarem vão começar a quebrar tudo,
e com toda probabilidade vão pegar seu telefone e vão enrolá-lo em seu pescoço, ou coisas do tipo, mas não são garotos ruins, não mesmo, só que...
- Senhor Gould?
- Pois não?
- O senhor se incomodaria de me dizer quantos anos tem?
- Treze.

José Colaço Barreiros - Difel
(pagine successive)

- Treze?
- Doze... para sermos exactos, doze.
- Ouve, Gould, a tua mãe não está por aí?
- A minha mãe foi-se embora há quatro anos, agora vive com um professor que estuda os peixes, os hábitos dos peixes, um etólogo, para sermos precisos.
- Lamento muito.
- Não deve lamentar, a vida é assim, não se pode fazer nada.
- A sério?
- A sério. Não acredita?
- Sim... creio que é assim... não sei ao certo, imagino que seja assim.
- Malfadadamente é assim.
- Tem doze anos, certo?
- Amanhã faço treze, amanhã.
- Esplêndido.
- Esplêndido.
- Bom aniversário, Gould.
- Obrigado.
- Vais ver que será esplêndido ter treze anos.
- Espero bem.
- Muitos parabéns, a sério.
- Obrigado.
- Por acaso não está por aí o teu pai, hem?
- Não. Está a trabalhar.
- Pois...
- O meu pai trabalha para o exército.
- Esplêndido.
- É sempre tudo assim tão esplêndido para si?
- Sim... creio que sim.
- Esplêndido.
- Quero dizer... acontece-me muitas vezes, pronto.
- É uma sorte.
- Também me acontece nos momentos mais estranhos.
- Creio que é uma sorte, a sério.
- Uma vez estava num snack-bar, na Estatal 16, mesmo à saída da cidade, parei num snack-bar, entrei e pus-me na bicha, na caixa estava um vietnamita, não percebia quase nada, assim ninguém se despachava, diziam-lhe um hamburguer e ele dizia Como?, talvez fosse o primeiro dia de trabalho, não sei, assim pus-me a olhar à minha volta, dentro do snack-bar, havia cinco e seis mesas, e toda a gente a comer, tantas caras diferentes e cada um com uma coisa diferente diante de si, uma costeleta, uma sanduíche, um chili, comiam todos, e cada um estava vestido exactamente como quisera vestir-se, tinha-se levantado de manhã e escolhido qualquer coisa para pôr, a blusa aquela vermelha, e o vestido justo nas mamas, exactamente o que queria, e agora estava ali, e cada um deles tinha uma vida para trás e uma vida à frente, estavam precisamente a transitar ali dentro, amanhã voltariam a fazer tudo desde o início, a blusa aquela azul, o vestido comprido, e certamente a loura das sardas tinha uma mãe num hospital qualquer, com todos os exames do sangue disparatados, mas agora estava ali a separar as batatas fritas um tanto escuras das outras, lendo o jornal apoiado em cima do saleiro em forma de bomba de gasolina, havia um todo vestido de basebolista, que de certeza não entrava num campo de basebol há anos, estava ali com o filho, um miudinho, e não parava de lhe dar caroladas na cabeça, por trás da cabeça, todas as vezes o miúdo voltava a endireitar o bonezinho, um bonezinho de basebol, e o pai tac, outra carolada, e tudo enquanto comiam, por baixo de um televisor suspenso na parede, apagado, com o ruído da estrada, que vinha em vagas, sentados a um canto dois muito elegantes, de cinzento, dois homens, e um deles via-se que chorava, era absurdo, mas estava a chorar, sobre um bife com batatas, chorava em silêncio, e o outro nem um gesto, também com um bife à frente, comia e mais nada, sozinho, a certa altura levantou-se, foi até à mesa do lado, pegou no frasco de ketchup, voltou ao seu lugar e com cuidado para não sujar o fato cinzento deitou um bocado no prato do outro, do que chorava, e segredou-lhe qualquer coisa, não sei o quê, depois fechou o frasco e tornou a comer, eles ao canto, e tudo o resto à volta, com um gelado de ginja pisado no chão, e na porta da casa de banho um letreiro que dizia avariada, eu olhei para aquilo tudo e é claro que era só de pensar que vómito, rapazes, uma coisa de dar vómitos de tão triste que era, e afinal o que me aconteceu foi que enquanto ali estava na bicha e o vietnamita continuava a não perceber um corno eu pensei meu Deus que belo, até com uma certa vontade de rir, raios como é belo isto tudo, mesmo tudo, até à última migalha esmagada no chão, até ao último guardanapo todo engordurado, sem saber porquê, mas sabendo que era verdade, era tudo danadamente belo. Absurdo, não é?
- Estranho.
- Até dá vergonha contá-lo.
- Porquê?
- Não sei... as pessoas não costumam contar coisas do género...
- Eu gostei.
- Ora...
- Não, a sério, especialmente a história do ketchup...
- Pegou no frasco e deitou-lhe um bocado...
- Pois.
- Todo vestido de cinzento.
- Cómico.
- Assim.
- Assim.
- Gould?
- Sim.
- Estou contente por teres telefonado.
- Eh, não, espera...
- Estou aqui.
- Como te chamas?
- Shatzy.
- Shatzy.
- Chamo-me Shatzy Shell.
- Shatzy Shell.
- Sim.
- E aí não está ninguém a enrolar-te o fio do telefone ao pescoço, pois não?
- Não.
- Não te esqueces, quando eles aparecerem, de que não são maus?
- Vais ver que não aparecem.
- Não contes com isso, hão-de vir...
- Porque haviam de vir, Gould?
- Diesel adora Mami Jane. E ele tem dois metros e quarenta e sete centímetros de altura.
- Esplêndido.
- Depende. Quando está muito furioso não é nada esplêndido.
- E agora está muito furioso?
- Tu também ficarias se fizessem um referendo para matar Mami Jane, e Mami Jane fosse o teu ideal de mãe.
- É só um referendo, Gould.
- Diesel diz que é tudo uma fraude. Já decidiram há meses que vão matá-la, fazem isto só para ficarem limpos.
- Talvez se engane.
- Diesel nunca se engana. Ele é um gigante.
- Gigante quanto?
- Muito.
- Eu uma vez estive com um tipo que encestava no básquete sem sequer se pôr nos bicos dos pés.
- A sério?
- Mas o trabalho dele era rasgar os bilhetes num cinema.
- E tu amava-lo?
- Que pergunta é essa, Gould?
- Disseste que estiveste com ele.
- Sim, estávamos juntos. Estivemos juntos vinte e dois dias.
- E depois?
- Não sei... era tudo um tanto complicado, percebes?
- Sim... com Diesel também é tudo um tanto complicado.
- É assim.
- Eh... Quando Diesel experimentou ir à escola, lá em baixo na Taton, chegou lá uma manhã...
- Gould?
- Sim.
- Desculpa-me um instante, Gould.
- Okay.
- Fica em linha, de acordo?
- Okay.
Shatzy Shell pôs a linha em espera. Depois virou-se para o senhor que de pé, diante da sua secretária, estava a observá-la. Era o chefe do departamento de desenvolvimento e promoção. Chamava-se Bellerbaumer. Era daqueles que chupam a haste dos óculos.
- Senhor Bellerbaumer?
O senhor Bellerbaumer aclarou a voz.
- Menina, está a falar de gigantes.
- Exacto.
- Está a telefonar há doze minutos e está a falar de gigantes.
- Doze minutos?
- Ontem conversou alegremente durante vinte e sete minutos com um agente da Bolsa que no fim lhe propôs casamento.
- Não sabia quem era Mami Jane, tive de...
- E na véspera ficou agarrada a esse telefone uma hora e onze minutos a corrigir os trabalhos a um rapazola cabulíssimo que depois como resposta lhe deu: porque não dão cabo de Ballon Mac.
- Poderia ser uma ideia, pense bem.
- Menina, esse telefone é propriedade da CRB; e a si pagam-lhe para dizer uma única maldita frase: Mami Jane deve morrer?
- Tento fazer o melhor que posso.
- Eu também. E por isso despeço-a, menina Shell.
- Perdão?
- Sou obrigado a despedi-la, menina.
- A sério?
- Lamento muito.
- ...
- ...
- ...
- ...
- Senhor Bellerbaumer?
- Diga.
- Incomoda-o se acabo o telefonema?
- Qual telefonema?
- O telefonema. Tenho um rapaz em linha, à espera.
- ...
- ...
- Acabe lá o telefonema.
- Obrigada.
- De nada.
- Gould?
- Está?
- Acho que tenho de desligar, Gould.
- Okay.
- Acabaram de me despedir.
- Esplêndido.
- Não estou tão certa disso.
- Pelo menos não te estrangulam.
- Quem?
- Diesel e Poomerang.
- O gigante?
- O gigante é Diesel. Poomerang é o outro, o careca. É mudo.
- Poomerang.
- Sim. É mudo. Não fala. Ouve mas não fala.
- Apanham-nos à entrada.
- Em geral ninguém os apanha, àqueles dois.
- Gould?
- Sim.
- Mami Jane deve morrer?
- Vão todos levar no cu.
- "Não sei". Obrigado.
- Dizes-me uma coisa, Shatzy?
- Agora tenho de ir.
- Só uma coisa.
- Diz lá.
- Aquele sítio, aquele snack-bar...
- Sim...
- Estava a pensar... Não deve ser mau...
- Assim assim.
- Pensei que gostava de fazer lá a festa de anos.
- Em que sentido?
- Amanhã... são os meus anos... podíamos ir todos comer lá, se calhar ainda lá estão aqueles dois vestidos de cinzento, os do ketchup.
- É uma ideia estranha, Gould.
- Tu, eu, Diesel e Poomerang. Pago eu.
- Não sei.
- É uma boa ideia, juro.
- Talvez.
- 85.56.74.18.
- O que é?
- O meu número, se quiseres liga-me, okay?
- Não parece que tenhas treze anos.
- Faço-os só amanhã, para sermos exactos.
- Eh...
- Então, de acordo.
- Sim.
- De acordo.
- Gould?
- Sim?
- Ciao.
- Ciao, Shatzy.
- Ciao.
Shatzy Shell carregou no botão azul e desligou a linha. Demorou um pouco a enfiar na malinha de mão as suas coisas, era uma malinha amarela que tinha escrito Salva o planeta terra das unhas dos pés envernizadas. Levou também as fotografias emolduradas de Walt Disney e Eva Braun. E o pequeno gravador que andava sempre consigo. De vez em quando ligava-o e dizia coisas lá para dentro. As outras sete meninas olhavam para ela, mudas, enquanto os telefones tocavam em vão, congelando preciosas indicações sobre o futuro de Mami Jane. O que tinha a dizer, Shatzy Shell disse-o ao tirar os sapatos de ténis para calçar os de salto.
- Assim, para efeitos da crónica, daqui a pouco entrarão por aquela porta um gigante e um tipo sem cabelo, darão cabo de tudo e estrangular-vos-ão com os fios dos telefones. O gigante chama-se Diesel, o mudo Poomerang. Ou o contrário, já não me lembro bem. Seja como for, não são maus.
A foto de Eva Braun tinha uma moldura de plástico vermelho, e um suporte atrás, forrado a pano, e dobrável: para a ter de pé, neste caso. Ela, Eva Braun, tinha efectivamente a cara de Eva Braun. "Percebido?"
"Mais ou menos."
"Era pianista num enorme centro comercial, no rés-do-chão, debaixo da escada rolante que subia, puseram um bocado de alcatifa vermelha no chão e um piano de cauda branco e ele tocava seis horas por dia, de fraque, Chopin, Cole Porter, coisas do género, tudo de ouvido. Haviam-lhe fornecido um letreirinho impresso de maneira elegante, tinha lá escrito O nosso pianista volta já: quando precisava de ir à retrete sacava-o e punha-o em cima do piano. Depois voltava e recomeçava.
Não era mau como os outros pais, quero dizer, não mau dessa maneira... ele não batia em ninguém, não bebia, não fodia a secretária, nada do género, era um tipo que até o carro... não o comprava... tinha o cuidado de não ter um carro muito... demasiado novo, ou demasiado bom, não creio que fosse um plano preciso, não o fazia e basta, não fazia nenhuma dessas coisas, e era este precisamente o problema, percebes?, era aí que nascia o problema... que não fazia estas coisas, e mil outras coisas, trabalhava e mais nada, era isto que fazia, como se a vida o tivesse ofendido, e ele se tivesse recolhido naquele seu ofício que era uma derrota, sem nenhuma vontade de se livrar daquilo tudo, era como um buraco negro, uma voragem de infelicidade, e a tragédia, a verdadeira tragédia, o coração daquela tragédia toda foi que para esse buraco nos arrastou como um deus, a mim e à minha mãe, não fazia senão arrastar-nos lá para dentro, com uma constância miraculosa, em cada momento da sua vida, em cada instante, dedicando todos os seus gestos à maníaca demonstração de um teorema mortal, o seguinte teorema, que se ele era assim era-o por nós as duas, por mim e pela minha mãe, era este o teorema, por nós as duas, porque existíamos nós as duas, por culpa de nós as duas, por por por, todo o santo tempo a lembrar-nos este teorema idiota, toda a sua vida connosco foi este longo gesto ininterrupto e a esgotar-se, mas nunca o disse, ou seja, sem nunca dizer uma palavra, sem que nunca se falasse disto, nunca falava do assunto, podia dizer-nos, claramente, mas nunca o disse, nem uma palavra, e isto era tremendo, isto era cruel, nunca dizer nada, e depois dizer-to durante todo o santo tempo, por como se estava à mesa, e o que via na televisão, e até como se cortava o cabelo, e todas as danadas coisas que ele não fazia, e a cara com que olhava para ti... era cruel, é uma coisa que pode dar com uma pessoa em doida, e eu estava a ficar doida, era uma criança, uma criança não se pode defender, as crianças são uns estupores mas para certas coisas não têm defesas, é como bater-lhes, o que pode fazer uma criança, não pode fazer nada, eu não podia fazer nada, ficava doida e mais nada, assim um dia a minha mãe pegou em mim e contou-me a história de Eva Braun. Era um belo exemplo. A filha de Hitler. Disse-me que eu tinha de pensar em Eva Braun. Ela conseguiu, tu também hás-de conseguir, disse-me.
Era um discurso estranho, mas fazia sentido. Disse-me que quando ele se matou, no fim, com uma pastilha de cianeto, ela se matara com ele, estava lá, no bunker, e matou-se com ele. Porque até no pior dos pais há qualquer coisa de bom, disse-me. E tem de se aprender a amar essa qualquer coisa. Eu pensava. Imaginava em que é que ele podia ser bom, Hitler, e construía histórias sobre este assunto, do tipo ele que volta para casa à noite, cansado, e fala baixinho, sentando-se à lareira, a fixar o lume, morto de cansaço, e eu, que era Eva Braun, não?, uma menina com trancinhas louras, e as pernas branquíssimas por baixo da saia, eu olhava para ele sem me aproximar, da divisão ao lado, e ele estava tão esplendidamente cansado, com todo aquele sangue que lhe corria por todo o lado, belíssimo na sua farda, não podia deixar de estar ali a olhar para ele, o sangue desaparecia e via-se só o cansaço, maravilhoso cansaço, que eu estava ali a adorar, até que ele a certa altura se virava para mim, e me via, e me sorria, e se punha de pé, com todo o seu encandeante cansaço em cima e vinha para junto de mim: Hitler. Coisa de doidos. Dizia-me qualquer coisa baixinho, em alemão, e depois com a mão, a mão direita, lentamente acariciava-me os cabelos, e por mais enregeladora que nos possa parecer, aquela mão era doce, e quente, e suave, tinha uma espécie de sabedoria lá dentro, uma mão que te podia salvar, e, por mais repugnante que pudesse parecer, uma mão que podias amar, que acabavas por amar, acabavas por pensar como era bom que fosse a mão direita do teu pai, doce, sobre ti. Eram coisas do género que eu fazia que me passassem pela cabeça. Para me treinar, percebes? Eva Braun era o meu ginásio. Com o tempo tornei-me óptima. À noite fitava o meu pai, sentado em pijama à frente da televisão, até ver Hitler, de pijama à frente da televisão. Mantinha parada a imagem por um bocado, devorava-a muito bem, e depois desfocava-a e tornava ao meu pai, à sua cara verdadeira: deus meu, parecia mesmo dulcíssima, com todo aquele cansaço e aquela infelicidade. Depois voltava a Hitler, depois repescava o meu pai, andava para trás e para a frente com a fantasia e era uma maneira de escapar à tortura, aos silêncios, a toda aquela merda. Funcionava. Aqui para nós raras vezes funcionava. Está bem. Uns bons anos mais tarde li numa revista que Eva Braun não era filha de Hitler, mas sim amante. Ou mulher, não sei. Em suma, ia para a cama com ele. Foi um choque. Fiz uma data de confusões na cabeça.
Tentei reordenar as coisas, de qualquer modo, mas não havia maneira. Não conseguia tirar da ideia a imagem de Hitler a aproximar-se daquela menina e começar a beijá-la e tudo o resto, um nojo, e a menina era eu, Eva Braun, e ele transformava-se no meu pai, uma confusão enorme, uma coisa horrenda. Tinha-se feito em estilhaços, o brinquedo, não se podia arranjá-lo, tinha funcionado, mas já não funcionava. Acabou ali. Nunca mais gostei do meu pai enquanto não apanhou outro comboio, como dizia ele. Uma história cómica. Apanhou outro comboio num domingo qualquer. Estava ali a tocar, debaixo da escada rolante, e chegou ao pé dele uma senhora toda cheia de jóias e também já um tanto alegrota. Ele estava a tocar When we were alive, e ela pôs-se a dançar, à frente de toda a gente, com os sacos das compras na mão, e um ar de beatitude. Continuaram assim durante uma boa meia hora. Depois ela levou-o para sempre. Tudo o que ele disse em casa foi: apanhei outro comboio. Aí, para ser sincera, tornei a gostar um bocado dele, porque era como uma libertação, não sei, até se tinha penteado um pouco à latin lover, com a risca bem traçada no meio dos cabelos brancos, e uma camisa nova, nessa altura deu-me para gostar dele, pelo menos por um instante, foi como uma libertação. Apanhei outro comboio. Anos de tragédia doméstica apagados por uma frase insignificante. Grotesco. Mas muitas vezes é assim, é assim quase sempre: descobre-se no fim que a dor, toda aquela dor, era inútil, que se sofreu como umas bestas e era inútil, não era nem justo nem injusto, não era belo nem feio, era só inútil, tudo o que se pode dizer no fim é: foi uma dor inútil. Coisa de enlouquecer, se pensares bem, o melhor é não pensar nisso, tudo o que podes fazer é não pensar mais nisso, nunca mais, percebes?"
"Mais ou menos."
"É bom o hamburguer?"
"Sim."
Aconteceu, porém, que Diesel e Poomerang acabaram por nunca chegar à CRB porque no cruzamento da Sétima Rua com o Boulevard Bourdon encontraram diante dos olhos, no meio do passeio, o salto alto de um sapato preto, vindo parar ali sabe-se lá donde, mas imóvel como uma minúscula rocha na torrente em maré cheia da gente lançada para o intervalo do almoço.
- Diabo - disse Diesel.
- O que é aquilo? - nãodisse Poomerang.
- Olha - disse Diesel.
- Diabo - nãodisse Poomerang.
Fixavam aquele tacão preto, em bico, e em menos de nada viu-se - um instante após o inevitável flash de um tornozelo em nylon escuro - viu-se o passo que o tinha perdido, exactamente o passo, entendido como ritmo e dança, compasso fêmea esmaltado nylon escuro. Viram-no primeiro no pêndulo dançante de duas pernas finas, e depois na guinada mole que o seio, por baixo da blusa, recolhia mandando-a para os cabelos - curtos pretos, pensou Diesel - curtos louros, pensou Poomerang - suficientemente lisos e finos para dançarem àquele ritmo, que nos seus olhos já se transformara em corpo feminino, e humanidade e história, quando de repente se encrespou no minúsculo contratempo de um salto que se põe a oscilar, a um passo, e se vergou no passo seguinte, separando-se do sapato e daquele ritmo todo - de fêmea humanidade e história - obrigando-o a uma cadência - não precisamente a uma queda - para recuperar o equilíbrio de uma imobilidade - o silêncio.
Havia uma grande confusão à volta deles, mas nada parecia capaz de arrancá-los dali. Diesel ainda mais curvado que o normal, de olhos fixos no chão. Poomerang com a mão esquerda a alisar para trás e para diante o crânio rapado: a direita pendurada no bolso das calças de Diesel, como sempre. Olhavam para um salto alto preto, mas estavam a ver na realidade aquela mulher descompor-se e afrouxar, viram-na voltar-se por um instante dizendo
- Merda
sem pensar por um instante sequer em parar, como faria uma mulher normal - parar, voltar atrás, recuperar o salto, tentar prendê-lo ao sapato amparando-se com uma mão a um sinal de trânsito, de sentido proibido - não pensando em fazer uma coisa assim razoável, mas pelo contrário continuando a caminhar, justamente com o costume de dizer
- Merda
no próprio momento em que, excluindo o amarrotar da sua beleza no contratempo de um coxear obrigado, descalça o sapato ferido, com um gesto ligeiro, sem deixar de andar,
e torna-se então definitivamente uma lenda, para eles ambos, descalçando também o outro - compasso descalço cromado nylon escuro - pega nos sapatos, atira-os para um cesto azul enquanto já olha à sua volta à procura do que imediatamente acha, uma viatura amarela que sobe a avenida lentamente: levanta um braço, pelo pulso desliza qualquer coisa de ouro, a viatura amarela acende o pisca-pisca, pára, ela entra, dita um endereço enquanto mete para dentro uma perna fina - pé descalço - através do assento fazendo subir a saia e por um momento que dura um abrir e fechar de olhos a tépida perspectiva de uma cinto de ligas que desaparece por uns centímetros de coxa - branca - e depois reaparece numa orla de slip, pouco mais de um relâmpago que porém se infiltra nos olhos de um senhor de fato escuro que não deixa de caminhar mas arrasta consigo, colado à retina, o tépido relâmpago, que lhe escalda a consciência e se abate sobre o cingir da sua narcose de homem cansadamente casado, com um grande barulho de chapas e de lamentos.
O que aconteceu foi que Diesel e Poomerang ficaram encravados no homem de escuro, na verdade chupados pelo bem comportado rasto da sua perturbação, que os impressionou, por assim dizer, até verem a cor do seu tapete de quarto - castanha - e sentirem o cheiro da sua cozinha. Chegaram a sentar-se à mesa com ele, e notaram que a mulher se ria demasiado com as piadas que despejava a tevê acesa, enquanto ele, o senhor de fato escuro, lhe deitava cerveja no copo, ficando ele com a garrafa de água mineral, tépida e sem gás, a que o constrangia há anos a lembrança de quatro remotas cólicas renais. Encontraram na segunda gaveta da sua escrivaninha setenta e duas páginas de um romance, incompleto, que se intitulava A última aposta, e um cartão de visita - Dr. Mortensen - tendo marcados no retro dois lábios de bâton violeta. O radiodespertador estava sintonizado nos 102.4 Radio Nostalgia, e por cima do abat-jour da mesinha de cabeceira, para cobrir a luz, estava um opúsculo dos Meninos de Deus que teorizava a imoralidade da caça e pesca: o título, um tanto chamuscado pela lâmpada, recitava: Farei de vós pescadores de homens.
Estavam a vasculhar na roupa íntima da senhora Mortensen quando, por banal e vulgar associação de ideias, lhes remontou no sangue a recordação do compasso fêmea esmaltado nylon escuro - abalo feroz que os obrigou a precipitarem-se para trás até ao táxi amarelo, e a fazê-los permanecer ali, na berma da estrada, um tanto apalermados pela ruinosa descoberta - ruinosa desaparição do táxi amarelo nas vísceras da cidade - toda a avenida cheia de carros, mas vazia de táxis amarelos e lendas instaladas no assento posterior.
- Santo Deus - disse Diesel.
- Desaparecida - nãodisse Poomerang.
Na superfície curva do salto alto preto fixaram toda uma cidade, milhares de ruas, centenas de automóveis amarelos, cegos.
- Perdida - disse Diesel.
- Talvez - nãodisse Poomerang.
- É como procurar uma agulha em palheiro.
- Procurar, mas não o carro.
- Há milhares deles.
- Não o carro amarelo.
- Demasiados carros.
- Não o carro, os sapatos.
- Para onde exactamente pode ir um carro amarelo.
- Sapatos. Uma sapataria.
- Aonde ela disse que queria ir.
- A uma sapataria. À sapataria mais próxima.
- Olhou para o taxista e disse...
- A sapataria mais próxima. Sapatos de salto alto pretos.
- ...a melhor sapataria, aqui perto.
- Toxon's, Quarta Rua, segundo andar, sapatos femininos.
- Toxon's, raios.
Reencontraram-na diante de um espelho, de sapatos pretos nos pés, de salto alto, e um empregado que dizia
- Perfeitos.
Então não a perderam mais. Por um número impreciso de horas catalogaram os seus gestos e os objectos à volta dela, como se experimentassem perfumes. Era uma coisa que agora já tinham respirado, quando, após um jantar interminável, a seguiram até à cama de um homem que cheirava a água de colónia, e com o telecomando não parava de tocar o Bolero de Ravel. À frente da cama havia um aquário, com um peixe roxo, e muitas bolhinhas estúpidas. Ele fazia amor em religioso silêncio: pousara a aliança de ouro na mesa de cabeceira, ao lado de uma embalagem de cinco preservativos de marca. Ela espetava-lhe as unhas nas costas, com bastante força para ele as sentir, com bastante suavidade para não deixarem marcas. Ao sétimo Bolero, disse:
- Desculpa
e deslizou para fora da cama, vestiu-se, enfiou os sapatos pretos de salto alto, e foi-se embora, sem dizer nada. A última coisa que viram dela foi uma porta a fechar-se, docemente.
Chuva. Asfalto como um espelho a toda a volta do salto alto preto, brilhante olho ali a observá-los. - Chuva - disse Diesel.
Levantaram os olhos, luz diferente, parda, pouca gente, ruído de pneus e poças de água. Sapatos podres, água pelo pescoço abaixo. Nos relógios, uma hora sem nenhum préstimo.
- Vamos - disse Diesel.
- Vamos - nãodisse Poomerang.
Caminhava com dificuldade, Diesel, e lento, rastejando o pé esquerdo, sapato ridículo, imane, preso a uma perna que mudava de ideias do joelho para baixo, e era a custo que curvava, enviesando cada passo em danças cubistas. E respirava com dificuldade, como um ciclista em subida, uma respiração que era ritmo porco e sofrimento. Poomerang conhecia aquele passo e aquela respiração de cor e salteado. Agarrava-se a eles e dançava-os elegante, ostentando um cansaço de maratona de tango.
Um e outro, juntos, e depois pedaços podres de cidade na rua de casa, luzes líquidas de semáforos, carros em terceira a fazer ruído de chapinhar, um salto no chão, cada vez mais longe, olho molhado, já sem pálpebras, sem pestanas, olho acabado.
A foto de Walt Disney era um pouco maior que a de Eva Braun. Tinha uma moldura de madeira clara, e um suporte atrás, dobrável: para a manter de pé, neste caso. Ele, Walt Disney, tinha o cabelo branco e estava encavalitado num comboiozinho, sorridente. Era um comboio para crianças, com uma locomotiva e muitas carruagens. Não tinha rodas de ferro, mas de borracha, e estava na Disneylândia, Anaheim, Califórnia.
"Percebido?"
"Mais ou menos."
"Em suma, ele era o maior, foi o maior. Um reaccionário bestial, se quiseres, mas sabia mexer com a felicidade, era o seu talento, chegava direito à felicidade, sem complicações, e levou atrás dele todos, o maior alugador de felicidade que já se viu, tinha-a para todas as bolsas, para todos os gostos, com as suas histórias de patos e de anões e bambis, se pensares, como terá feito, e no entanto ali se pôs e destilou de todo o grande caos algo que depois se te perguntarem o que é a felicidade, mesmo que te enoje um bocado no fim tens de admitir que, se calhar não exactamente o que é, mas que sabor tem, o gosto, quero dizer, como se dissesse de morango ou de framboesa, a felicidade tem aquele gosto mesmo, não é santo, será falso quanto quiseres, não será a felicidade autêntica, a original, por assim dizer, mas eram cópias fabulosas, melhores que o original, que também não há maneira de..."
"Acabou."
"Acabou?"
"Sim."
"Que tal?"
"Enfim."
"Vamos?"
"Vamos."
Vamos? Vamos.