Chamava-se Shatzy Shell. Às 10 e 45 do décimo segundo dia
de referendo - quando a morte de Mami Jane estava a ganhar por 64 a 30 (os 6 por
cento restantes consideravam que deviam ir todos levar no cu, e telefonaram para
o dizer) - Shatzy Shell ouviu tocar o telefone pela vigésima primeira vez,
escreveu no impresso que tinha à frente o número 21 e levantou o auscultador.
Seguiu-se esta conversa:
- CRB, bom dia. - Bom dia, já chegou Diesel?
- Quem? - Okay, ainda não chegou... - Aqui é a CRB, senhor. -
Sim, bem sei.
- Deve ter-se enganado no número. - Não, não, está tudo
bem, agora oiça-me bem...
- Senhor... - Sim? - Aqui é a CRB, é o
referendo "Mami Jane deve morrer?".
- Obrigado, bem sei. - Então
importa-se de ter a amabilidade de me dar o seu nome?
- Não tem importância
o meu nome.
- Tem de dar-mo, é da praxe. - Okay, okay... Gould... o meu
nome é Gould.
- Senhor Gould. - Sim, senhor Gould, agora posso... Mami
Jane deve morrer?
- Perdão?
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- Deverá dizer-me o que pensa você... se Mami Jane deve morrer
ou não.
- Oh santo Deus... - Você sabe, não é verdade?, quem é Mami
Jane?
- Claro que sei, mas... - Vê, deverá só dizer-me se pensa que...
- Quer fazer o favor de me ouvir só um instante? - Claro. - Então
faça-me um favor, olhe à sua volta.
- Eu? - Sim. - Aqui? - Sim,
aí, na sala, faça-me este favor.
- Okay, estou a ver. - Bom. Vê por
acaso um rapaz rapado à máquina zero trazendo pela mão um muito grande, mas
mesmo grande, uma espécie de gigante, com uns sapatos enormes, e um casaco
verde?
- Não, não creio. - Tem a certeza? - Sim, tenho a certeza.
- Bom. Então ainda não chegaram. - Não. - Okay, então quero que
fique sabendo uma coisa.
- Sim? - Esses dois não são maus. - Não?
- Não. Quando chegarem vão pôr-se a dar cabo de tudo, e com todas as
probabilidades vão pegar no seu telefone e apertar-lho à roda do pescoço, ou
coisas do género, mas não são rapazes maus, na verdade, é só que...
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- Senhor Gould... - Sim? - Importa-se de me dizer
quantos anos tem?
- Treze. - Treze? - Doze... para sermos exactos,
doze.
- Ouve, Gould, a tua mãe não está por aí? - A minha mãe foi-se
embora há quatro anos, agora vive com um professor que estuda os peixes, os
hábitos dos peixes, um
etólogo, para sermos precisos. - Lamento
muito.
- Não deve lamentar, a vida é assim, não se pode fazer nada. - A
sério?
- A sério. Não acredita? - Sim... creio que é assim... não sei ao
certo, imagino que seja assim.
- Malfadadamente é assim. - Tem doze
anos, certo?
- Amanhã faço treze, amanhã. - Esplêndido. -
Esplêndido.
- Bom aniversário, Gould. - Obrigado. - Vais ver que
será esplêndido ter treze anos.
- Espero bem. - Muitos parabéns, a
sério.
- Obrigado. - Por acaso não está por aí o teu pai, hem? -
Não. Está a trabalhar.
- Pois... - O meu pai trabalha para o exército.
- Esplêndido. - É sempre tudo assim tão esplêndido para si? - Sim...
creio que sim.
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- Esplêndido. - Quero dizer... acontece-me muitas vezes,
pronto.
- É uma sorte. - Também me acontece nos momentos mais estranhos.
- Creio que é uma sorte, a sério. - Uma vez estava num snack-bar, na
Estatal 16, mesmo à saída da cidade, parei num snack-bar, entrei e pus-me na
bicha, na caixa estava um vietnamita, não percebia quase nada, assim ninguém se
despachava, diziam-lhe um hamburguer e ele dizia Como?, talvez fosse o primeiro
dia de trabalho, não sei, assim pus-me a olhar à minha volta, dentro do
snack-bar, havia cinco e seis mesas, e toda a gente a comer, tantas caras
diferentes e cada um com uma coisa diferente diante de si, uma costeleta, uma
sanduíche, um
chili, comiam todos, e cada um estava vestido exactamente
como quisera vestir-se, tinha-se levantado de manhã e escolhido qualquer coisa
para pôr, a blusa aquela vermelha, e o vestido justo nas mamas, exactamente o
que queria, e agora estava ali, e cada um deles tinha uma vida para trás e uma
vida à frente, estavam precisamente a
transitar ali dentro, amanhã
voltariam a fazer tudo desde o início, a blusa aquela azul, o vestido comprido,
e certamente a loura das sardas tinha uma mãe num hospital qualquer, com todos
os exames do sangue disparatados, mas agora estava ali a separar as batatas
fritas um tanto escuras das outras, lendo o jornal apoiado em cima do saleiro em
forma de bomba de gasolina, havia um todo vestido de basebolista, que de certeza
não entrava num campo de basebol há anos, estava ali com o filho, um miudinho, e
não parava de lhe dar caroladas na cabeça, por trás da cabeça, todas as vezes o
miúdo voltava a endireitar o bonezinho, um bonezinho de basebol, e o pai tac,
outra carolada, e tudo enquanto comiam, por baixo de um televisor suspenso na
parede, apagado, com o ruído da estrada, que vinha em vagas, sentados a um canto
dois muito elegantes, de cinzento, dois homens, e um deles via-se que chorava,
era absurdo, mas estava a chorar, sobre um bife com batatas, chorava em
silêncio, e o outro nem um gesto, também com um bife à frente, comia e mais
nada, sozinho, a certa altura levantou-se, foi até à mesa do lado, pegou no
frasco de ketchup, voltou ao seu lugar e com cuidado para não sujar o fato
cinzento deitou um bocado no prato do outro, do que chorava, e segredou-lhe
qualquer coisa, não sei o quê, depois fechou o frasco e tornou a comer, eles ao
canto, e tudo o resto à volta, com um gelado de ginja pisado no chão, e na porta
da casa de banho um letreiro que dizia
avariada, eu olhei para aquilo
tudo e é claro que era só de pensar
que vómito, rapazes, uma
coisa de dar vómitos de tão triste que era, e afinal o que me aconteceu foi que
enquanto ali estava na bicha e o vietnamita continuava a não perceber um corno
eu pensei
meu Deus que belo, até com uma certa vontade de rir, raios
como é belo isto tudo, mesmo tudo, até à última migalha esmagada no chão, até ao
último guardanapo todo engordurado, sem saber porquê, mas sabendo que era
verdade, era tudo danadamente belo. Absurdo, não é?
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- Estranho. - Até dá vergonha contá-lo. - Porquê? -
Não sei... as pessoas não costumam contar coisas do género...
- Eu gostei.
- Ora... - Não, a sério, especialmente a história do ketchup... -
Pegou no frasco e deitou-lhe um bocado...
- Pois. - Todo vestido de
cinzento.
- Cómico. - Assim. - Assim. - Gould? - Sim. -
Estou contente por teres telefonado.
- Eh, não, espera... - Estou aqui.
- Como te chamas? - Shatzy. - Shatzy. - Chamo-me Shatzy Shell.
- Shatzy Shell. - Sim. - E aí não está ninguém a enrolar-te o fio do
telefone ao pescoço, pois não?
- Não.
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- Não te esqueces, quando eles aparecerem, de que não são maus?
- Vais ver que não aparecem. - Não contes com isso, hão-de vir... -
Porque haviam de vir, Gould?
- Diesel adora Mami Jane. E ele tem
dois metros e quarenta e sete centímetros de altura.
- Esplêndido. -
Depende. Quando está
muito furioso não é nada esplêndido. - E agora
está
muito furioso? - Tu também ficarias se fizessem um referendo
para matar Mami Jane, e Mami Jane fosse o teu ideal de mãe.
- É só um
referendo, Gould.
- Diesel diz que é tudo uma fraude. Já decidiram há meses
que vão matá-la, fazem isto só para ficarem limpos.
- Talvez se engane.
- Diesel nunca se engana. Ele é um gigante. - Gigante quanto? -
Muito.
- Eu uma vez estive com um tipo que encestava no básquete sem sequer
se pôr nos bicos dos pés.
- A sério? - Mas o trabalho dele era rasgar os
bilhetes num cinema.
- E tu amava-lo? - Que pergunta é essa, Gould?
- Disseste que estiveste com ele. - Sim, estávamos juntos.
Estivemos juntos vinte e dois dias.
- E depois? - Não sei... era tudo um
tanto
complicado, percebes? - Sim... com Diesel também é tudo um
tanto complicado.
- É assim.
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- Eh... Quando Diesel experimentou ir à escola, lá em baixo na
Taton, chegou lá uma manhã...
- Gould? - Sim. - Desculpa-me um
instante, Gould.
- Okay. - Fica em linha, de acordo? - Okay.
Shatzy Shell pôs a linha em espera. Depois virou-se para o senhor que de pé,
diante da sua secretária, estava a observá-la. Era o chefe do departamento de
desenvolvimento e promoção. Chamava-se Bellerbaumer. Era daqueles que chupam a
haste dos óculos.
- Senhor Bellerbaumer? O senhor Bellerbaumer aclarou a
voz.
- Menina, está a falar de gigantes. - Exacto. - Está a
telefonar há doze minutos e está a falar de gigantes.
- Doze minutos? -
Ontem conversou alegremente durante vinte e sete minutos com um agente da Bolsa
que no fim lhe propôs casamento.
- Não sabia quem era Mami Jane, tive de...
- E na véspera ficou agarrada a esse telefone uma hora e onze minutos a
corrigir os trabalhos a um rapazola cabulíssimo que depois como resposta lhe
deu: porque não dão cabo de Ballon Mac.
- Poderia ser uma ideia, pense bem.
- Menina, esse telefone é propriedade da CRB; e a si pagam-lhe para dizer
uma única maldita frase: Mami Jane deve morrer?
- Tento fazer o melhor que
posso.
- Eu também. E por isso despeço-a, menina Shell. - Perdão? -
Sou obrigado a despedi-la, menina.
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- A sério? - Lamento muito. - ... - ... -
...
- ... - Senhor Bellerbaumer? - Diga. - Incomoda-o se acabo o
telefonema?
- Qual telefonema? - O telefonema. Tenho um rapaz em linha,
à espera.
- ... - ... - Acabe lá o telefonema. - Obrigada. -
De nada.
- Gould? - Está? - Acho que tenho de desligar, Gould. -
Okay.
- Acabaram de me despedir. - Esplêndido. - Não estou tão certa
disso.
- Pelo menos não te estrangulam. - Quem? - Diesel e
Poomerang.
- O gigante? - O gigante é Diesel. Poomerang é o outro, o
careca. É mudo.
- Poomerang.
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- Sim. É mudo. Não fala. Ouve mas não fala. - Apanham-nos à
entrada.
- Em geral ninguém os apanha, àqueles dois. - Gould? - Sim.
- Mami Jane deve morrer? - Vão todos levar no cu. - "Não sei".
Obrigado.
- Dizes-me uma coisa, Shatzy? - Agora tenho de ir. - Só
uma coisa.
- Diz lá. - Aquele sítio, aquele snack-bar... - Sim...
- Estava a pensar... Não deve ser mau... - Assim assim. - Pensei que
gostava de fazer lá a festa de anos.
- Em que sentido? - Amanhã... são
os meus anos... podíamos ir todos comer lá, se calhar ainda lá estão aqueles
dois vestidos de cinzento, os do ketchup.
- É uma ideia estranha, Gould.
- Tu, eu, Diesel e Poomerang. Pago eu. - Não sei. - É uma boa ideia,
juro.
- Talvez. - 85.56.74.18. - O que é? - O meu número, se
quiseres liga-me, okay?
- Não parece que tenhas treze anos. - Faço-os só
amanhã, para sermos exactos.
- Eh...
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- Então, de acordo. - Sim. - De acordo. - Gould?
- Sim? - Ciao. - Ciao, Shatzy. - Ciao. Shatzy Shell carregou
no botão azul e desligou a linha. Demorou um pouco a enfiar na malinha de mão as
suas coisas, era uma malinha amarela que tinha escrito
Salva o planeta terra
das unhas dos pés envernizadas
. Levou também as fotografias emolduradas de
Walt Disney e Eva Braun. E o pequeno gravador que andava sempre consigo. De vez
em quando ligava-o e dizia coisas lá para dentro. As outras sete meninas olhavam
para ela, mudas, enquanto os telefones tocavam em vão, congelando preciosas
indicações sobre o futuro de Mami Jane. O que tinha a dizer, Shatzy Shell
disse-o ao tirar os sapatos de ténis para calçar os de salto.
- Assim, para
efeitos da crónica, daqui a pouco entrarão por aquela porta um gigante e um tipo
sem cabelo, darão cabo de tudo e estrangular-vos-ão com os fios dos telefones. O
gigante chama-se Diesel, o mudo Poomerang. Ou o contrário, já não me lembro bem.
Seja como for, não são maus.
A foto de Eva Braun tinha uma moldura de
plástico vermelho, e um suporte atrás, forrado a pano, e dobrável: para a ter de
pé, neste caso. Ela, Eva Braun, tinha efectivamente a cara de Eva Braun.
"Percebido?"
"Mais ou menos." "Era pianista num enorme centro comercial,
no rés-do-chão, debaixo da escada rolante que subia, puseram um bocado de
alcatifa vermelha no chão e um piano de cauda branco e ele tocava seis horas por
dia, de fraque, Chopin, Cole Porter, coisas do género, tudo de ouvido.
Haviam-lhe fornecido um letreirinho impresso de maneira elegante, tinha lá
escrito
O nosso pianista volta já: quando precisava de ir à retrete
sacava-o e punha-o em cima do piano. Depois voltava e recomeçava.
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Não era mau como os outros pais, quero dizer, não mau dessa
maneira... ele não batia em ninguém, não bebia, não fodia a secretária, nada do
género, era um tipo que até o carro... não o comprava... tinha o cuidado de não
ter um carro muito... demasiado novo, ou demasiado bom, não creio que fosse um
plano preciso, não o fazia e basta, não fazia nenhuma dessas coisas, e era este
precisamente o problema, percebes?, era aí que nascia o problema... que não
fazia estas coisas, e mil outras coisas, trabalhava e mais nada, era isto que
fazia,
como se a vida o tivesse ofendido, e ele se tivesse recolhido
naquele seu ofício que era uma derrota, sem nenhuma vontade de se livrar daquilo
tudo, era como um buraco negro, uma voragem de infelicidade, e a tragédia, a
verdadeira tragédia, o coração daquela tragédia toda foi que para esse buraco
nos arrastou como um deus, a mim e à minha mãe, não fazia senão arrastar-nos lá
para dentro, com uma constância miraculosa, em cada momento da sua vida, em cada
instante, dedicando todos os seus gestos à maníaca demonstração de um teorema
mortal, o seguinte teorema, que se ele era assim era-o
por nós as duas,
por mim e pela minha mãe, era este o teorema, por nós as duas,
porque existíamos nós as duas, por culpa de nós as duas, por por por, todo o
santo tempo a lembrar-nos este teorema idiota, toda a sua vida connosco foi este
longo gesto ininterrupto e a esgotar-se, mas nunca o disse, ou seja, sem nunca
dizer uma palavra, sem que nunca se falasse disto, nunca falava do assunto,
podia dizer-nos, claramente, mas nunca o disse, nem uma palavra, e isto era
tremendo, isto era cruel, nunca dizer nada, e depois dizer-to durante todo o
santo tempo, por como se estava à mesa, e o que via na televisão, e até como se
cortava o cabelo, e todas as danadas coisas que ele não fazia, e a cara com que
olhava para ti... era cruel, é uma coisa que pode dar com uma pessoa em doida, e
eu estava a ficar doida, era uma criança, uma criança não se pode defender, as
crianças são uns estupores mas para certas coisas não têm defesas, é como
bater-lhes, o que pode fazer uma criança, não pode fazer nada, eu não podia
fazer nada, ficava doida e mais nada, assim um dia a minha mãe pegou em mim e
contou-me a história de Eva Braun. Era um belo exemplo. A filha de Hitler.
Disse-me que eu tinha de pensar em Eva Braun. Ela conseguiu, tu também hás-de
conseguir, disse-me.
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Era um discurso estranho, mas fazia sentido. Disse-me que
quando ele se matou, no fim, com uma pastilha de cianeto, ela se matara com ele,
estava lá, no bunker, e matou-se com ele. Porque até no pior dos pais há
qualquer coisa de bom, disse-me. E tem de se aprender a amar essa qualquer
coisa. Eu pensava. Imaginava em que é que ele podia ser bom, Hitler, e construía
histórias sobre este assunto, do tipo ele que volta para casa à noite, cansado,
e fala baixinho, sentando-se à lareira, a fixar o lume, morto de cansaço, e eu,
que era Eva Braun, não?, uma menina com trancinhas louras, e as pernas
branquíssimas por baixo da saia, eu olhava para ele sem me aproximar, da divisão
ao lado, e ele estava tão esplendidamente cansado, com todo aquele sangue que
lhe corria por todo o lado, belíssimo na sua farda, não podia deixar de estar
ali a olhar para ele, o sangue desaparecia e via-se só o cansaço, maravilhoso
cansaço, que eu estava ali a adorar, até que ele a certa altura se virava para
mim, e me via, e me sorria, e se punha de pé, com todo o seu encandeante cansaço
em cima e vinha para junto de mim: Hitler. Coisa de doidos. Dizia-me qualquer
coisa baixinho, em alemão, e depois com a mão, a mão direita, lentamente
acariciava-me os cabelos, e por mais enregeladora que nos possa parecer, aquela
mão era doce, e quente, e suave, tinha uma espécie de sabedoria lá dentro, uma
mão que te podia salvar, e, por mais repugnante que pudesse parecer, uma mão que
podias amar, que acabavas por amar, acabavas por pensar como era bom que fosse a
mão direita do teu pai, doce, sobre ti. Eram coisas do género que eu fazia que
me passassem pela cabeça. Para me treinar, percebes? Eva Braun era o meu
ginásio. Com o tempo tornei-me óptima. À noite fitava o meu pai, sentado em
pijama à frente da televisão, até ver Hitler, de pijama à frente da televisão.
Mantinha parada a imagem por um bocado, devorava-a muito bem, e depois
desfocava-a e tornava ao meu pai, à sua cara verdadeira: deus meu, parecia mesmo
dulcíssima, com todo aquele cansaço e aquela infelicidade. Depois voltava a
Hitler, depois repescava o meu pai, andava para trás e para a frente com a
fantasia e era uma maneira de escapar à tortura, aos silêncios, a toda aquela
merda. Funcionava. Aqui para nós raras vezes funcionava. Está bem. Uns bons anos
mais tarde li numa revista que Eva Braun não era filha de Hitler, mas sim
amante. Ou mulher, não sei. Em suma, ia para a cama com ele. Foi um choque. Fiz
uma data de confusões na cabeça.
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Tentei reordenar as coisas, de qualquer modo, mas não havia
maneira. Não conseguia tirar da ideia a imagem de Hitler a aproximar-se daquela
menina e começar a beijá-la e tudo o resto, um nojo, e a menina era eu, Eva
Braun, e ele transformava-se no meu pai, uma confusão enorme, uma coisa
horrenda. Tinha-se feito em estilhaços, o brinquedo, não se podia arranjá-lo,
tinha funcionado, mas já não funcionava. Acabou ali. Nunca mais gostei do meu
pai enquanto não apanhou outro comboio, como dizia ele. Uma história cómica.
Apanhou outro comboio num domingo qualquer. Estava ali a tocar, debaixo da
escada rolante, e chegou ao pé dele uma senhora toda cheia de jóias e também já
um tanto alegrota. Ele estava a tocar When we were alive, e ela pôs-se a dançar,
à frente de toda a gente, com os sacos das compras na mão, e um ar de beatitude.
Continuaram assim durante uma boa meia hora. Depois ela levou-o para sempre.
Tudo o que ele disse em casa foi: apanhei outro comboio. Aí, para ser sincera,
tornei a gostar um bocado dele, porque era como uma libertação, não sei, até se
tinha penteado um pouco à latin lover, com a risca bem traçada no meio dos
cabelos brancos, e uma camisa nova, nessa altura deu-me para gostar dele, pelo
menos por um instante, foi como uma libertação. Apanhei outro comboio. Anos de
tragédia doméstica apagados por uma frase insignificante. Grotesco. Mas muitas
vezes é assim, é assim quase sempre: descobre-se no fim que a dor, toda aquela
dor, era inútil, que se sofreu como umas bestas e era inútil, não era nem justo
nem injusto, não era belo nem feio, era só inútil, tudo o que se pode dizer no
fim é: foi uma dor inútil. Coisa de enlouquecer, se pensares bem, o melhor é não
pensar nisso, tudo o que podes fazer é não pensar mais nisso, nunca mais,
percebes?"
"Mais ou menos." "É bom o hamburguer?" "Sim."
Aconteceu, porém, que Diesel e Poomerang acabaram por nunca chegar à CRB
porque no cruzamento da Sétima Rua com o Boulevard Bourdon encontraram diante
dos olhos, no meio do passeio, o salto alto de um sapato preto, vindo parar ali
sabe-se lá donde, mas imóvel como uma minúscula rocha na torrente em maré cheia
da gente lançada para o intervalo do almoço.
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- Diabo - disse Diesel. - O que é aquilo? - nãodisse
Poomerang.
- Olha - disse Diesel. - Diabo - nãodisse Poomerang.
Fixavam aquele tacão preto, em bico, e em menos de nada viu-se - um instante
após o inevitável flash de um tornozelo em nylon escuro - viu-se o passo que o
tinha perdido, exactamente o passo, entendido como ritmo e dança, compasso fêmea
esmaltado nylon escuro. Viram-no primeiro no pêndulo dançante de duas pernas
finas, e depois na guinada mole que o seio, por baixo da blusa, recolhia
mandando-a para os cabelos - curtos pretos, pensou Diesel - curtos louros,
pensou Poomerang - suficientemente lisos e finos para dançarem àquele ritmo, que
nos seus olhos já se transformara em corpo feminino, e humanidade e história,
quando de repente se encrespou no minúsculo contratempo de um salto que se põe a
oscilar, a um passo, e se vergou no passo seguinte, separando-se do sapato e
daquele ritmo todo - de fêmea humanidade e história - obrigando-o a uma cadência
- não precisamente a uma queda - para recuperar o equilíbrio de uma imobilidade
- o silêncio.
Havia uma grande confusão à volta deles, mas nada parecia
capaz de arrancá-los dali. Diesel ainda mais curvado que o normal, de olhos
fixos no chão. Poomerang com a mão esquerda a alisar para trás e para diante o
crânio rapado: a direita pendurada no bolso das calças de Diesel, como sempre.
Olhavam para um salto alto preto, mas estavam a ver na realidade aquela mulher
descompor-se e afrouxar, viram-na voltar-se por um instante dizendo
- Merda
sem pensar por um instante sequer em parar, como faria uma mulher normal -
parar, voltar atrás, recuperar o salto, tentar prendê-lo ao sapato amparando-se
com uma mão a um sinal de trânsito, de sentido proibido - não pensando em fazer
uma coisa assim razoável, mas pelo contrário continuando a caminhar, justamente
com o costume de dizer
- Merda no próprio momento em que, excluindo o
amarrotar da sua beleza no contratempo de um coxear obrigado, descalça o sapato
ferido, com um gesto ligeiro, sem deixar de andar,
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e torna-se então definitivamente uma lenda, para eles ambos,
descalçando também o outro - compasso descalço cromado nylon escuro - pega nos
sapatos, atira-os para um cesto azul enquanto já olha à sua volta à procura do
que imediatamente acha, uma viatura amarela que sobe a avenida lentamente:
levanta um braço, pelo pulso desliza qualquer coisa de ouro, a viatura amarela
acende o pisca-pisca, pára, ela entra, dita um endereço enquanto mete para
dentro uma perna fina - pé descalço - através do assento fazendo subir a saia e
por um momento que dura um abrir e fechar de olhos a tépida perspectiva de uma
cinto de ligas que desaparece por uns centímetros de coxa - branca - e depois
reaparece numa orla de slip, pouco mais de um relâmpago que porém se infiltra
nos olhos de um senhor de fato escuro que não deixa de caminhar mas arrasta
consigo, colado à retina, o tépido relâmpago, que lhe escalda a consciência e se
abate sobre o cingir da sua narcose de homem cansadamente casado, com um grande
barulho de chapas e de lamentos.
O que aconteceu foi que Diesel e Poomerang
ficaram encravados no homem de escuro, na verdade chupados pelo bem comportado
rasto da sua perturbação, que os impressionou, por assim dizer, até verem a cor
do seu tapete de quarto - castanha - e sentirem o cheiro da sua cozinha.
Chegaram a sentar-se à mesa com ele, e notaram que a mulher se ria demasiado com
as piadas que despejava a tevê acesa, enquanto ele, o senhor de fato escuro, lhe
deitava cerveja no copo, ficando ele com a garrafa de água mineral, tépida e sem
gás, a que o constrangia há anos a lembrança de quatro remotas cólicas renais.
Encontraram na segunda gaveta da sua escrivaninha setenta e duas páginas de um
romance, incompleto, que se intitulava
A última aposta, e um cartão de
visita - Dr. Mortensen - tendo marcados no retro dois lábios de bâton violeta. O
radiodespertador estava sintonizado nos 102.4 Radio Nostalgia, e por cima do
abat-jour da mesinha de cabeceira, para cobrir a luz, estava um opúsculo dos
Meninos de Deus que teorizava a imoralidade da caça e pesca: o título, um tanto
chamuscado pela lâmpada, recitava:
Farei de vós pescadores de homens.
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Estavam a vasculhar na roupa íntima da senhora Mortensen
quando, por banal e vulgar associação de ideias, lhes remontou no sangue a
recordação do compasso fêmea esmaltado nylon escuro - abalo feroz que os obrigou
a precipitarem-se para trás até ao táxi amarelo, e a fazê-los permanecer ali, na
berma da estrada, um tanto apalermados pela ruinosa descoberta - ruinosa
desaparição do táxi amarelo nas vísceras da cidade - toda a avenida cheia de
carros, mas vazia de táxis amarelos e lendas instaladas no assento posterior.
- Santo Deus - disse Diesel. - Desaparecida - nãodisse Poomerang. Na
superfície curva do salto alto preto fixaram toda uma cidade, milhares de ruas,
centenas de automóveis amarelos, cegos.
- Perdida - disse Diesel. -
Talvez - nãodisse Poomerang.
- É como procurar uma agulha em palheiro. -
Procurar, mas não o carro.
- Há milhares deles. - Não o carro amarelo.
- Demasiados carros. - Não o carro, os sapatos. - Para onde
exactamente pode ir um carro amarelo.
- Sapatos. Uma sapataria. - Aonde
ela disse que queria ir.
- A uma sapataria. À sapataria mais próxima. -
Olhou para o taxista e disse...
- A sapataria mais próxima. Sapatos de salto
alto pretos.
- ...a melhor sapataria, aqui perto.
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- Toxon's, Quarta Rua, segundo andar, sapatos femininos. -
Toxon's, raios.
Reencontraram-na diante de um espelho, de sapatos pretos nos
pés, de salto alto, e um empregado que dizia
- Perfeitos. Então não a
perderam mais. Por um número impreciso de horas catalogaram os seus gestos e os
objectos à volta dela, como se experimentassem perfumes. Era uma coisa que agora
já tinham respirado, quando, após um jantar interminável, a seguiram até à cama
de um homem que cheirava a água de colónia, e com o telecomando não parava de
tocar o
Bolero de Ravel. À frente da cama havia um aquário, com um
peixe roxo, e muitas bolhinhas estúpidas. Ele fazia amor em religioso silêncio:
pousara a aliança de ouro na mesa de cabeceira, ao lado de uma embalagem de
cinco preservativos de marca. Ela espetava-lhe as unhas nas costas, com bastante
força para ele as sentir, com bastante suavidade para não deixarem marcas. Ao
sétimo
Bolero, disse: - Desculpa e deslizou para fora da cama,
vestiu-se, enfiou os sapatos pretos de salto alto, e foi-se embora, sem dizer
nada. A última coisa que viram dela foi uma porta a fechar-se, docemente.
Chuva. Asfalto como um espelho a toda a volta do salto alto preto, brilhante
olho ali a observá-los. - Chuva - disse Diesel.
Levantaram os olhos, luz
diferente, parda, pouca gente, ruído de pneus e poças de água. Sapatos podres,
água pelo pescoço abaixo. Nos relógios, uma hora sem nenhum préstimo.
-
Vamos - disse Diesel.
- Vamos - nãodisse Poomerang. Caminhava com
dificuldade, Diesel, e lento, rastejando o pé esquerdo, sapato ridículo, imane,
preso a uma perna que mudava de ideias do joelho para baixo, e era a custo que
curvava, enviesando cada passo em danças cubistas. E respirava com dificuldade,
como um ciclista em subida, uma respiração que era ritmo porco e sofrimento.
Poomerang conhecia aquele passo e aquela respiração de cor e salteado.
Agarrava-se a eles e dançava-os elegante, ostentando um cansaço de maratona de
tango.
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Um e outro, juntos, e depois pedaços podres de cidade na rua de
casa, luzes líquidas de semáforos, carros em terceira a fazer ruído de
chapinhar, um salto no chão, cada vez mais longe, olho molhado, já sem
pálpebras, sem pestanas, olho acabado.
A foto de Walt Disney era um pouco
maior que a de Eva Braun. Tinha uma moldura de madeira clara, e um suporte
atrás, dobrável: para a manter de pé, neste caso. Ele, Walt Disney, tinha o
cabelo branco e estava encavalitado num comboiozinho, sorridente. Era um comboio
para crianças, com uma locomotiva e muitas carruagens. Não tinha rodas de ferro,
mas de borracha, e estava na Disneylândia, Anaheim, Califórnia.
"Percebido?"
"Mais ou menos." "Em suma, ele era o maior, foi o maior. Um reaccionário
bestial, se quiseres, mas sabia mexer com a felicidade, era o seu talento,
chegava direito à felicidade, sem complicações, e levou atrás dele todos, o
maior alugador de felicidade que já se viu, tinha-a para todas as bolsas, para
todos os gostos, com as suas histórias de patos e de anões e bambis, se
pensares, como terá feito, e no entanto ali se pôs e destilou de todo o grande
caos algo que depois se te perguntarem o que é a felicidade, mesmo que te enoje
um bocado no fim tens de admitir que, se calhar não exactamente o que é, mas que
sabor tem, o gosto, quero dizer, como se dissesse de morango ou de framboesa, a
felicidade tem aquele gosto mesmo, não é santo, será falso quanto quiseres, não
será a felicidade autêntica, a original, por assim dizer, mas eram cópias
fabulosas, melhores que o original, que também não há maneira de..."
"Acabou." "Acabou?" "Sim." "Que tal?" "Enfim." "Vamos?"
"Vamos." Vamos? Vamos.
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